Deixei partir um, quase vazio, que ia directo ao meu destino. Fiquei aborrecido porque se tivesse chegado à gare 2 minutos antes teria conseguido apanhar aquele comboio, onde arranjaria um lugar sentado. Esses dois minutos resultaram em ter que fazer a curta viagem toda em pé, encostado desconfortavelmente na coxia.
Viajo pouco de comboio, mas lembro-me bem de que, quando viajava mais, por razões profissionais, cada viagem era quase como que uma festa ou um momento de puro relaxamento. Grupos de passageiros que se conheciam há muito apenas por se cruzarem todos os dias, na mesma composição, no mesmo horário, de manhã ou à tarde. Estranhava-se e indagava-se se algum falhava mais do que um dia ou dois. Sabia-se sempre quando iam de férias os que connosco partilhavam o espaço alegre do comboio.
Lia-se a última obra adquirida ao círculo de leitores em suaves prestações mensais. Capas bem forradas para que não se desbotasse a gravura que havia de enquadrar, lombada bem direitinha, a decoração da estante da sala. Debatiam-se as últimas do futebol, os golos falhados, os erros do árbitro cuja mãe era sempre a vítima mais à mão, as picardias habituais que acabavam sempre numas boas e sonoras gargalhadas. O comboio, do que me recordo, era um momento de descontraido convívio até à estação de destino de cada um. Nunca se viajava em solidão, nem mesmo quem ia sózinho.
Após ter dado um pequeno e inadvertido encontrão, com a minha pasta de ombro, à jovem senhora que ocupava o lugar próximo do meu encosto ocasional na coxia, pedi desculpas, mas não me livrei de um olhar enfastiado e reprovador como se tivesse cometido gravíssima falha não merecedora de perdão. Acomodei-me, tirei da mala "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que tenho andado a reler em breves soluços ocasionais, dei-me conta do rolo no estômago que o dr. Ricardo Reis carregava enquanto subia nervosamente a Rua do Alecrim afim de comparecer na sede da polícia política depois de ter sido intimado por uma contra-fé recebida no hotel Bragança. Olhei por sobre a cabeça dos meus companheiros de viagem ocasionais. A composição estava cheia no final da tarde de ontem. Parecia até que todos os passageiros caminhavam com Ricardo Reis, rua do alecrim acima, desconfiados de um percurso em que nada de bom os aguardava. Rostos fechados; semblantes carregados. Nem o regresso a casa consegue deslaçar a opressão sobre quem terminou um dia de fadiga profissional. Os gadgets ocupam e retiram os espaços de convivialidade de outros tempos. Silêncio quase absoluto apenas entrecortado pelo ténue ruido do "pouca-terra" da moderna composição. Cada passageiro carrega o peso do mundo sobre si.
Senti nostalgia das minhas boas e curtas viagens de comboio onde as vozes quase troavam e as gargalhadas eram soltas e subversivas. Não havia gadgets. Apenas um ou outro livro aberto e o jornal da manhã, maioritariamente desportivo. Outros tempos, sem dúvida, quando não havia troika, nem governos neo-liberais a roubar os sorrisos, mesmo se só as gargalhadas eram livres.
Jacinto Lourenço