quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O Céu Pode Esperar

A terra prometida não está em nenhuma latitude ou longitude específica.

Há já algum tempo que deixei de relacionar a salvação com a ida para o céu depois da morte. Na minha consciência religiosa, a noção de céu como um lugar reservado aos que foram declarados justos no tribunal de Deus foi ultrapassada. Hoje essa noção é apenas uma metáfora possível e legítima, especialmente para quem observa superficialmente a teologia Paulina. Mas o caminho “terra-tribunal-céu” é apenas uma forma de representar a relação entre Deus e o ser humano, concretamente no que se refere ao destino eterno deste último. Mas há outras metáforas relacionando o Senhor e os homens, além das figuras de juiz e réu – como, por exemplo, rei e súbditos; general e soldados; senhor e escravos; mestre e discípulos. Das figuras bíblicas, a predilecta de Jesus era Pai e Filho. Foi assim que Ele nos ensinou a evocar e invocar o nome de Deus: Abba. Logo, podemos compreender que a salvação é a “formação” da pessoa de Jesus Cristo em cada ser humano, de modo que todos sejam conforme à imagem do unigénito Filho de Deus. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, deve ser transformado à imagem de Jesus Cristo, “o qual é imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação, pois foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse” (Colossenses 1:15,19). Nesse sentido, a salvação pode ser compreendida como processo de “humanização”, que Joshua Heschel entendia como “superação da condição humana”, ou mais precisamente, como “cristificação”, uma vez que este “humano em plenitude” é como Cristo, participante da natureza de Deus, conforme II Pedro 1.4.

A salvação em Jesus, portanto, é muito menos ir para determinado lugar, do que tornar-se um tipo de pessoa. O que importa é a transformação do indivíduo, para que a “imago Dei” lhe seja restaurada, não mais à semelhança de Adão, mas do Cristo de Deus. Tal compreensão confere sentido à existência, não apenas de direcção, mas de significado. Quem acorda na segunda-feira, a pensar no céu após a morte tende a desenvolver a fé expectante (que espera o porvir), enquanto que aquele que se levanta da cama desejando ser como Cristo, está mais próximo da fé enactante, ou seja, fé em acção, que está comprometida com o “vir a ser”.

O processo pelo qual Deus nos convida a vir a ser como Cristo pode deduzir-se de quatro eventos paradigmáticos que, por sua vez, sugerem quatro estágios da peregrinação espiritual. O primeiro está contido no chamamento de Adão após o seu acesso ao fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, seguido da fuga. Conforme Génesis 3:9, Deus passeia pelo jardim e chama-o, dizendo: “Adão, onde estás?” Evidentemente, o Senhor não queria descobrir a localização geográfica de Adão. A Sua pergunta era um chamamento à responsabilidade. Adão aparece, mas ainda assim “escondido” atrás da sua mulher, e ambos se “escondidos” atrás da serpente. Um passo no processo de humanização é o acolhimento da responsabilidade – e a consequente dignidade que o direito de viver e existir impõe a todo ser humano. O segundo evento é a chamada de Abraão: “Sai da tua terra e da casa de teu pai, do meio da tua parentela, para uma terra que eu te mostrarei” (Gênesis 12:1-3). O rabino Bonder observa que nessa vocação não há endereço, só chamamento: “Não se trata de uma trajectória para um lugar, mas sim de um caminho para si. “Lech Lechá” – assim convoca Deus a Abraão –, “vai em busca de ti”, até a terra que eu te mostrarei. O destino é o próprio meio. Simbolismo da própria vida – à qual nos apegamos como se fosse a terra, a posse maior. Na fala divina, o objecto não é a terra, é o caminhar, é o ir”. Mais um passo na direcção da “cristificação”; é o seguimento de Jesus, “Vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens”, que exige deixar tudo o mais (Mateus 4.18-20).

O terceiro evento é o momento em que Deus pergunta pelo nome de Jacob, narrado em Gênesis 32:27. A expressão “Qual é o teu nome?” quer saber da identidade real, em detrimento da identidade idealizada, projectada ou assumida. Enquanto a personagem não for desmascarada, a pessoa à imagem de Deus e do seu Cristo não encontrarão espaço. Finalmente, ouvimos Deus dizer a Moisés: “Tira os sapatos de teus pés; porque o lugar em que estás é terra santa” (Êxodo 3.5). Bonder explica novamente: “A descoberta final de qualquer peregrino, de qualquer andarilho que caminha para si mesmo, é de que somos fundamentalistas. Esses fundamentos são os sapatos com os quais caminhamos pela vida. Esta relação tão ambígua entre o calçado e o caminhante, entre o fundamento e a essência, ou entre a sola e o solo, é o território por onde se dirige Abraão. Esta terra prometida não está em nenhuma latitude e longitude específica. Trata-se de uma viagem não geográfica. A vulnerabilidade maior está nos fundamentos, nas crenças básicas que carregamos na nossa identidade”.

É também imprescindível dar um passo no processo de “humanização-cristificação”, abandonar as teorias e entregar-se ao mistério sagrado. De nada vale ser “doutor da Lei”; importa renascer: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus” (João 3.3).

Por René Kivitz in Cristianismo Hoje

Adaptado ao português usado em Portugal por Ab-Integro