domingo, 28 de fevereiro de 2010

"O diabo do Poder"

Quando se reflecte sobre o mal, o que mais impressiona é o mal moral: porque é que a liberdade não é sempre boa? Porque não fazemos sempre o bem? Estas perguntas são de tal modo dramáticas que, para explicar o bem e o mal no mundo, muitas vezes se recorreu a um duplo Princípio: um Princípio do Bem e um Princípio do mal. No contexto do cristianismo, que, por sua vez, bebeu noutras fontes religiosas mais antigas, o diabo apareceu como "solução" para o enigma. Ele seria o Tentador e o ser humano nem sempre resiste à tentação. Neste contexto, é preciso dizer, em primeiro lugar, que o Credo cristão não fala do diabo. O cristão não acredita no diabo, mas em Deus. Quanto ao diabo tentador, seria necessário perguntar quem tentou o diabo para, de anjo bom, se tornar anjo mau, precipitado no inferno e tentador dos homens. Lembro que já Kant fez notar que um catequizando iroquês perguntou ao missionário: porque é que Deus não acabou com o diabo? Quanto às tentações, não é preciso diabo nenhum. Bastamos nós. O Homem, entre a finitude e o Infinito, está inevitavelmente sujeito à falibilidade e à queda. Tentação vem do latim temptare, que, para lá de ensaiar, experimentar, tentar, também quer dizer atacar, procurar seduzir e corromper, pôr à prova. Neste quadro, a tentação maior é a do poder, não enquanto serviço, mas enquanto domínio, vanglória e exaltação do eu. Pela sua própria dinâmica, o poder tende a ser total. E porquê? Porque a ilusão da omnipotência dá a ilusão da imortalidade, de dominar, vencer e matar a morte. Omnipotentes, seríamos imortais. [...] Quem quiser uma prova de que a tentação maior é a do poder - financeiro, económico, político... - olhe para o palco da presente situação nacional. A tentação maior da Igreja é a do poder: poder social e político, controlo das consciências, imposição das suas normas aos não crentes, aceitação de uma religiosidade mágica e milagreira... "A última tentação de Cristo", na cruz, não foi, como sugeriu M. Scorsese, casar com Maria Madalena, mas descer da cruz. Não cedeu. Deus não livra da finitude nem, consequentemente, da morte.
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Por Anselmo Borges *** in Diário de Notícias Online