sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Deus Revela-se em Tudo

Carlos Mesters, o mais popular biblista do Brasil, sublinha que há no Antigo Testamento dois decálogos, o da Aliança e o da Criação. O da Aliança surgiu primeiro, embora o outro já existisse. Ocorre que o povo de Deus, por não levar a sério o da Aliança, não tinha olhos para perceber o Decálogo da Criação. Ao longo dos 400 anos da monarquia (de 1000 a 600 a.C.), Javé, o Deus libertador do Êxodo, foi reduzido a um ídolo manipulado pelos poderes civil e religioso para legitimar a corrupção e a ganância dos reis. E ninguém dava ouvidos às denúncias dos profetas. Até que Nabucodonosor, rei da Babilónia, invadiu a Palestina em 587 a.C. e destruiu Jerusalém. O choque da dominação e do exílio abriu os olhos do povo de Deus para o Decálogo da Criação: "O ritmo da natureza, do sol, da lua, das estações, das chuvas, das estrelas, das plantas, revela o poder criador de Deus" - afirma Mesters. "É a expressão do bem-querer do Deus Criador, da pura gratuidade! É uma certeza que não falha. É a prova de que Deus não rejeitou o seu povo. A nossa fraqueza pode levar-nos a romper com Deus (como de facto aconteceu), mas Deus não rompe conosco, pois cada manhã, através da sequência dos dias e das noites, ele nos fala ao coração". A nossa visão do mundo interfere na nossa visão de Deus, assim como o modo de concebermos Deus influi na visão que temos da vida e do mundo. Ao longo de 1.000 anos predominou, no Ocidente, a cosmovisão de Ptolomeu, que considerava a Terra o centro do Universo. Isso favoreceu a hegemonia espiritual, cultural e económica da Igreja, encarada pela fé como imagem da Jerusalém Celeste. Com o advento da Idade Moderna, graças à nova cosmovisão de Copérnico, logo completada por Galileu e Newton, constatou-se que a Terra é apenas um pequeno planeta que, qual mulata de escola de samba, dança em torno da própria cintura (24 horas, dia e noite) e do mestre-sala, o sol (365 dias, um ano). O paradigma da fé deu lugar à razão, a religião à ciência, Deus ao ser humano. Passou-se da visão geocêntrica à heliocêntrica, da teocêntrica à antropocêntrica. Agora, a modernidade cede lugar à pós-modernidade. Mais uma vez, a nossa visão do Universo sofre radicais mudanças. Newton cede lugar a Einstein, e o advento da astrofísica e da física quântica obrigam-nos a encarar o Universo de modo diferente e, portanto, também a ideia de Deus. Se na Idade Média Deus habitava "lá em cima" e, na Idade Moderna, "aqui em baixo", dentro do coração humano, agora conhecemos melhor o que o apóstolo Paulo quis dizer ao afirmar: "Ele não está longe de cada um de nós, pois nEle vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dentre os vossos poetas disseram: "Somos da raça do próprio Deus" (Actos dos Apóstolos 17, 27-28). A física quântica, que penetra a intimidade do átomo e descreve a dança das partículas subatómicas, ensina-nos que toda a matéria, em todo o Universo, não passa de energia condensada. No interior do átomo, a nossa lógica cartesiana não funciona, pois ali predomina o princípio da indeterminação, ou seja, não se pode prever com exatidão o movimento das partículas subatómicas. Essa imprevisibilidade só predomina em duas instâncias do Universo: no interior do átomo e na liberdade humana. Em que é que a física quântica modifica a nossa visão do Universo? Ela livra-nos dos conceitos de Newton, de que o Universo é um grande relógio montado pelo divino Relojoeiro e cujo funcionamento pode ser bem conhecido estudando cada uma das suas peças. A física quântica ensina que não há o sujeito observador (o ser humano) frente ao objecto observado (o Universo). Tudo está intimamente interligado. O bater de asas de uma borboleta no Japão desencadeia uma tempestade na América do Sul... O nosso modo de examinar as partículas que se movem no interior do átomo interfere no percurso delas... Tudo o que existe coexiste, subsiste, pré-existe, e há uma inseparável interação entre o ser humano e a natureza. O que fazemos à Terra provoca uma reação da parte dela. Não estamos acima dela, somos parte e resultado dela; ela é "Pacha Mama" ou, como diziam os antigos gregos, "Gaia", um ser vivo. Deveríamos manter com ela uma relação inteligente de sustentabilidade. Esse novo paradigma científico nos permite contemplar o Universo com novos olhos. Nem tudo é Deus, mas Deus revela-se em tudo. A nossa visão religiosa é agora pananteísta. Não confundir com panteísta. O panteísmo diz que todas as coisas são Deus. O pananteísmo, que Deus está em todas as coisas. "Nele vivemos, nos movemos e existimos", como disse Paulo. E Jesus nos ensina que Deus é amor, essa energia que atrai todas as coisas, desde as moléculas que estruturam uma pedra às pessoas que comungam um projecto de vida.Como dizia Teilhard de Chardin, no amor tudo converge, de átomos, moléculas e células que formam os tecidos e órgãos do nosso corpo às galáxias que se aglomeram múltiplas nesta nossa Casa Comum que chamamos, não de Pluriverso, mas de Universo.
***
Por: Frei Beto*
***
(* autor de 51 livros, editados no Brasil e no exterior. Estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia. Frade dominicano )
***
Fonte Genizah