quinta-feira, 17 de março de 2011

A Cultura do Penacho.

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Na corte de Filipe III [de Portugal ], em Valladolid, os Castelhanos zombavam da soberba e vaidade dos portugueses: «não cuida um fidalgo português se não em que entrando na Corte, a hão-de assombrar, com os seus lacaios mais rica e custosamente vestidos do que nunca seus bisavós o fizeram nas suas vodas».
+ + ( José Mattoso [coord.] -História de Portugal V.III )
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Todos os dias identifico neste meu país razões para acreditar que somos um povo particular e, em alguns casos, único. Isso será bom e será mau, conforme os casos. Temos grandes virtudes e péssimos defeitos. Tendemos a minimizar as virtudes e maximizar os defeitos; Chamam a isso uma baixa auto-estima. Talvez seja. Mas há situações que põem a nu péssimos defeitos da nossa idiossincrasia colectiva e que, a meu ver, traduzem traços algo doentios da personalidade lusitana, como se demonstra, aliás, pela citação que encima este texto. Os nossos defeitos colectivos são verificáveis ao longo da história e mantêm-se vivos, para desgosto, na actualidade.
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Esta semana desloquei-me com a minha esposa a uma consulta de estomatologia numa clínica em Lisboa afim de ela ser atendida em urgência. Embora algo reputada, esta clínica atende pessoas de variadíssimos estratos sociais mercê de contractos celebrados com larga diversidade de entidades seguradoras e de segurança social. Não é, portanto, uma clínica elitista, longe disso.
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Enquanto a minha esposa aguardava a sua vez, lá ia ouvindo a recepcionista chamando pontualmente os nomes das pessoas que ali estavam para consulta. Espantoso não é por termos estado três horas à espera por uma marcação de urgência, porque esse é um outro defeito, o de não se respeitarem horários previamente estabelecidos para o atendimento público, a minha estupefacção deve-se à forma como a recepcionista chamava alguns utentes: "sr. engº fulano de tal", "sr. dr. sicrano", e por aí fora. Ora a mim não me incomoda rigorosamente nada que a minha esposa não tivesse sido igualmente chamada fazendo-se menção do seu título académico ( facto que de certeza, a verificar-se, a deixaria incomodada ); o que acho desgraçadamente infeliz e estúpido, permita-se-me o termo, é o facto de algumas pessoas, ao marcarem uma simples consulta médica, encontrarem necessidade de mencionarem o seu título académico para que o mesmo seja usado no momento da chamada para o consultório. No caso da minha esposa, o nome que foi dado para marcação de consulta foi apenas o dela, sem mais nenhum apêndice que viria sempre a despropósito neste, como em qualquer outro caso similar, e foi pelo seu nome que foi chamada para atendimento.
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Imagino que uma pequena sala de espera de uma clínica dentária seja plateia exígua para egos a necessitarem deste tipo de afirmação pública, talvez preferissem um coliseu cheio, uma recepção lustrosa em qualquer palácio da nossa pobre república, um jornal tablóide desses de grandes tiragens com vacuidades proporcionais, quiçá uma revista cor de rosa dependurada nos escaparates de todos os quiosques de rua.
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É esta mentalidade, mesquinha, apoucada, ridícula, exibicionista, bacoca, que contribui também para impedir os portugueses, enquanto nação, de crescerem culturalmente. Colou-se-nos à pele há já muitos séculos e, qual sanguessuga, insiste em não nos largar. Somos talvez, neste registo, um "caso de estudo" a nível mundial já que dificilmente encontraremos paralelo em qualquer outro país minimamente desenvolvido. Pelos vistos, para muitos portugueses, o título académico, continua a ser sinónimo de ostentação mais do que uma ferramenta de trabalho e elevação cultural. Não vejo nada igual a isto no estrangeiro. Nunca ouvi, em lado nenhum que, por exemplo, o presidente dos Estados Unidos, ou de outro país, fosse tratado pelo seu título académico, e não ponho em causa o direito de que assim seja, ele ou outra pessoa qualquer com idênticas credenciais académicas. Mas em Portugal, um país com um passado que, apesar de tudo nos continua a honrar, há Adamastores que custam a ser desmistificados; culpa nossa, seguramente, e desta cultura do penacho que continua a fazer escola, para nossa desgraça cultural e social, e o pior é que isto se mostra tranversal a vários sectores da nossa sociedade.
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Jacinto Lourenço