terça-feira, 5 de abril de 2011

O Hiato Negro de Portugal...



Há um país com as mais antigas fronteiras da europa sobre o qual hoje todos os olhares se colocam. Este país nunca foi rico, nunca foi grande, do ponto de vista geográfico, militar ou populacional. Este país é Portugal. Ainda hoje, quem olha, do ponto de vista histórico  para Portugal se interroga como é que lhe foi possível erguer a gesta dos descobrimentos em contra-corrente com o que eram as realidades  europeias no tráfego marítimo e comercial de então e, num outro plano mais crítico ainda, como é que este país periférico, apagado e afastado das principais linhas de força que marcavam o pensamento e as políticas europeias  teve arte e engenho para  construir o seu próprio renascimento científico e cultural num tempo em que na europa central se desenterrava o classicismo  para, nas letras e nas artes  se encetar uma reorientação europeia que rompesse com a idade das trevas. Teve êxito relativo, a europa, nesse domínio; porém, e pese embora o renascimento clássico, as fogueiras da inquisição não deixaram de ser alimentadas pelos corpos daqueles que lhe eram destinados pelos inquisidores católicos,  tal como as perseguições e mortes provocadas pelo  fundamentalismo protestante, no centro europeu,  que fizeram o possível por concorrer com elas, senão nos métodos, pelo menos nos objectivos de aniquilarem os opositores.

É verdade que o melhor do renascimento europeu pouco se sentiu na periferia, nomeadamente neste recanto português, e por isso mais intrigante nos surge o sucesso do país nos séculos XV e XVI,  mas também é verdade que, do seu isolamento  e marginalidade geográficos  souberam os portugueses tirar partido e criar o seu próprio renascimento, não apenas no capítulo do  desenvolvimento da ciência náutica, completamente inovadora, mas também no vasto conhecimento geográfico do mundo desconhecido até então e trazido por uma cartografia exemplar e rigorosa desse mundo novo para os europeus   cujas fronteiras mentais  estavam ainda cercadas pelo conhecimento disforme de um mundo aristotélico e ptolomaico. Os portugueses souberam elevar o comércio, a cartografia, as letras e a ciência natural  a um patamar a que provavelmente os restantes europeus não chegariam nem em três séculos de trabalho consecutivo. E podemos afirmar que o fizeram sózinhos, sem a ajuda de nenhum outro estado, mesmo sendo vigiados e espiados  de perto pelos vizinhos castelhanos. É verdade que se socorreram inicialmente de conhecimentos árabes, genoveses e outros. Mas não pode ser posto em causa que souberam incrementar e descobrir novos  caminhos e outras fórmulas a que esses não chegaram antes.

Quando, em qualquer parte do mundo, se  falar de gesta marítima, ciência  náutica, cartografia, ciência natural ou letras relacionadas com estas matérias, para se ser rigoroso,  é preciso que se diga que os portugueses,  durante dois séculos,  não tiveram concorrentes à altura. O mundo só é o que é,  hoje, porque os portugueses o estudaram exaustivamente e o deram a conhecer tal qual ele era. Claro que, e embora sem menosprezar o contributo de outros povos, é preciso que se diga que todos esses povos vieram a reboque de Portugal para o conhecimento científico e natural do mundo dos séculos XV e XVI. Colon, como lhe chamam os espanhóis, ou Colombo para os portugueses, está hoje comprovado, era português, marrano, talvez, mas português. Os relatos de Américo Vespúcio sobre o mundo então descoberto só foram possíveis porque este viajou em naus e caravelas portuguesas que lhe deram a possibilidade de observar, in loco, a "matéria prima" para as suas publicações. Fernão de Magalhães, o da viagem de circum-navegação ao serviço de Castela, era português, serviu na armada da Índia.

Portugal foi na verdade o único país europeu que manteve e desenvolveu originalmente um projecto náutico, descobridor e científico mas também comercial. Castela e mais tarde ingleses e holandeses  correram sempre atrás de nós. É certo que tiveram êxito os castelhanos na descoberta da América, com o Português Colombo, mas quando este procurava chegar às índias, desiderato de todos os navegadores de então, e ali aportou por engano... O que faltou a Castela foi ciência e conhecimento. Só Portugal os tinha tão desenvolvidos e guardou-os ciosamente pois essa era a sua maior fortuna: a inteligência e a ciência. Ingleses e Holandeses acabariam por nos alcançar e ultrapassar no comércio internacional somente ao fim de cerca de 200 anos. Tinham mais força, mais canhões. Ao mesmo tempo, Portugal ia sendo minado pela corrupção e ganância de donatários, capitães, funcionários coloniais e outros que, em posições de relevo e acesso às riquezas não queriam deixar passar a sua oportunidade de enriquecimento súbito, sendo que esse é um "tumor" que não conseguimos estirpar até hoje da nossa idiossincrasia colectiva: a corrupção e a ganância pessoal e despudorada de quem ocupa cargos ou lugares na esfera do poder.

D. João II e D. Manuel I passaram à história. D. João III, que teve acção bastante meritória no início do seu reinado, nomeadamente no domínio do desenvolvimento das colónias e na área das letras no território continental bem como no seu desenvolvimento em linha com a europa do renascimento clássico e com os novos ares que por lá sopravam, acabaria por se deixar subjugar  nesse campo  pelos Jesuítas,  em submissão aos ventos dominantes de Trento e da contra-reforma. Foi ele que em 1536 permitiu a entrada da inquisição em Portugal, facto que deu origem à fuga massiva de mercadores judeus e cristãos-novos do país; com eles ia uma parte significativa e relevante da massa crítica e da riqueza de Portugal. Este acontecimento, aliado a outros de abrangência nacional e de alcance ultramarino, tiveram como resultado a obrigação de Portugal ter que recorrer a empréstimos estrangeiros para sobreviver.

Devido à morte dos  dez filhos de D. João III, suceder-lhe-ia o neto D.Sebastião. Portugal passaria ainda por um período de regência que abriu caminho à  consolidação do domínio da igreja e ao incremento da inquisição que estenderia  os seus tentáculos até às Índias. Era o princípio do fim para Portugal, que se iria afundar em Alcácer-Quibir o  que  nos  conduziria à crise dinástica que escancarou portas ao domínio Castelhano durante sessenta anos.

Pessoalmente, vejo neste período dramático da nossa história um hiato negro que dura até hoje. Em qualquer dos casos, a perda de independência e autonomia nacional, nunca nos trouxe nada de bom e também não será agora que o vai trazer, com a Alemanha a mandar nos nossos destinos.  Talvez seja importante olharmos para a história para percebermos melhor quais são os caminhos que temos que percorrer enquanto povo, mesmo que o façamos sózinhos, até porque aqueles que hoje se dizem nossos amigos provam todos os dias o contrário disso. O melhor mesmo é limparmos a nossa casa do que não presta, organizá-la e olharmos para o caminho que existe para fazer percorrendo-o com a mesma determinação, coragem e ambição dos portugueses de quatrocentos e quinhentos. Só isso nos fará ganhar o respeito de quem nos olha hoje como os pobres desgraçados da Europa que só poderão obedecer aos seus ditames para sobreviver.

Não tenho praticamente nenhuma dúvida de que esta europa de hoje, e o projecto europeu iniciado com o tratado de Roma, não tem qualquer possibilidade política, social ou económica de sobrevivência comum. Não sendo economista, acredito que no dia em que o primeiro país tiver que sair da zona euro ( e acho que esse dia não virá longe ), a moeda única cairá com estrondo, agarrada a ela irá esta europa que neste momento se limita a servir os interesses de alemães e franceses. Ou seja: um projecto de União Europeia a vinte e sete que só serve os interesses de dois,  não interessa a ninguém, nem aos europeus nem a Portugal. É por isso que  está na hora de começarmos a olhar para o futuro com uma visão diferente esclarecida e inovadora, mesmo que o façamos em contra-corrente ou até sózinhos. Já estamos há muito habituados a contar só connosco. É preciso voltar a encontrar dentro da alma portuguesa os valores que nunca a  abandonaram.   


Jacinto Lourenço