Não me parece que a principal motivação que leva as pessoas, hoje, a festejar o Natal, seja o nascimento do Salvador, tal como também não tenho já nenhum tipo de ilusão sobre o que representará o Natal para quem a ele se agarra e lhe cola o novo epíteto de "festa de família". O conceito cristão de família, o conceito que Cristo revelou de família, é mais alargado, mais amplo, mais universal e está claríssimo no evangelho de Mateus 12:46-50: E, falando ele ainda à multidão, eis que estavam fora sua mãe e seus irmãos, pretendendo falar-lhe. E disse-lhe alguém: Eis que estão ali fora tua mãe e teus irmãos, que querem falar-te. Ele, porém, respondendo, disse ao que lhe falara: Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? E, estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; Porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe. Mercantilismo, e não mais do que isso! "Alegria" vivida pontualmente, comprada e vendida em tão grande sofreguidão que chega a intimidar-me.
Mas esta designada "festa de família" mercantil esquece, na voragem dos dias a degradação e miséria humana que nos cerca, ou lembra-a, igualmente, só por uns míseros dias, poucos, qual panaceia mitigadora de fracas consciências. Para Jesus, a família somos todos, todos os dias. Que sensatez, que nobreza ou consciência colectiva ou individual, alimenta, como escreveu Faranaz Keshavjee, esta bondade e generosidade que faz ostentação de abundância por um dia e "condena à miséria e solidão nos restantes 364 dias do ano ?" Em nome de que deus se pode agir assim? Que família é a nossa ? É por tudo isto que tenho cada vez mais dificuldade em me reconciliar com este "natal pequenino" de que todos falam por um dia ou dois e esquecem pelos restantes 364.
É por tudo isto que tenho saudades do Natal da minha infância e pré-adolescência. Não recebia brinquedos caros. Mesmo não sendo a "mesa" o centro das atenções, como hoje acontece, também nos deleitávamos, por vezes mais com as "fragrâncias gastronómicas" provenientes da preparação natalícia, do que a quantidade que lhes estava na origem. A oferta até podia não ser muita e a escolha poderia ser ainda menor, contudo havia o estritamente necessário sobre a mesa e, aquilo que temos por necessário, retirando à palavra "necessário" qualquer jogo mental, criatividade "verbal" ou adjectivação subliminar que lhe queiram associar, e em que o espírito humano é normalmente pródigo, não contamina o corpo nem a alma de nenhum cristão, mesmo se ele não consegue chegar com mais do que isso junto da família alargada de Deus. Concordo, minha cara Faranaz Keshavjee, que "é porque Jesus nasceu que todos os dias são dias de fazer Natal, de nos excedermos em boas-obras", mesmo sem que, para concluir isso, seja necessário eu ser muçulmano, ou eventualmente você ser cristã. "Rei morto Rei posto!" Espera-nos agora, dentro de cinco dias, a festa onde todos "faremos de conta" , num ritual de entorpecimento individual e colectivo prolongado à saciedade, mesmo se à nossa volta a família de Deus agoniza.
Jacinto Lourenço