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[ Título original do texto: "Compaixão é Fraqueza ?" ]
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«Minha experiência dá-me o direito de desconfiar, em princípio, dos impulsos chamados "desinteressados", e de todo o "amor ao próximo", sempre disposto à palavra e ao acto. Eu o vejo em si como fraqueza, como caso especial da incapacidade de resistência aos estímulos - a compaixão passa por virtude apenas entre os decadentes [...] compaixão cheira instanteneamente a plebe [...] Coloco a superação da compaixão entre as virtudes nobres.»
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Este relato não parece ser o relato de um homem. Bem poderia ter sido falado por um demónio. Mas pasmem, ele saiu da pena de um homem genial chamado Friedrich Nietzsche, em sua célebre confissão auto-biográfica de 1888 (Ecce Homo). Devemos reconhecer que não é muito comum ver alguém defendendo tão apaixonadamente a superação da compaixão e dos impulsos que nos levam a amar ao próximo. Contudo, apesar do tom ácido lançado como um míssel a uma das mais belas virtudes proclamadas pela fé cristã, Nietzsche não disse nenhuma novidade e por isso não deveríamos ficar tão espantados. Esta estranha idéia de "ser capaz de resistir aos estímulos da compaixão" que Nietzsche exalta como a virtude mais nobre, não é nada senão uma versão radicalmente ousada daquilo que os antigos gregos chamavam de apatheia. Nas escolas filosóficas gregas, principalmente a dos estóicos, a apatheia (de onde vem a palavra apatia) era um alvo a ser alcançado. Somente através da apatia e da indiferença, ou da total ausência de perturbação, que o individuo habilidosamente adestrado, conseguia chegar a um estado de ataraxia (tranquilidade) ou impertubabilidade. Ou seja, a apatheia era uma escolha para a felicidade, e a felicidade se resumia naquele momento em que a alma se torna insensível à dor e a qualquer sofrimento. Alguns estóicos como Epicteto acreditavam que o amor e a compaixão eram formas de escravidão, portanto, devemos nos treinar para a indiferença. Agora você percebe que não é muito diferente do que Nietzsche disse em Ecce Homo?Gostaria de fazer duas considerações. A primeira é quanto a impossibilidade de se viver sem sermos afectados pelas sensações decorrentes dos acontecimentos da vida. E a segunda, é uma consideração à chamada para uma existência mergulhada na compaixão de Cristo.
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Foi o humanista Erasmo de Roterdão que fez a crítica mais irónica ao estilo de vida dos estóicos. No seu incrível livro Elogio da Loucura, Erasmo defende a idéia que somente os loucos e aqueles que se entregam de forma apaixonada à vida podem ser felizes de facto. Assim diz a Loucura:"...toda a diferença entre um louco e um sábio é que o primeiro obedece às suas paixões e o segundo à sua razão. Eis porque os estóicos proibiram ao sábio as paixões como se fossem doenças. No entanto, são essas paixões que servem de guia aos que seguem com ardor o caminho da sabedoria; são elas que os estimulam a cumprir os deveres da virtude, inspirando-lhes o pensamento e o desejo de fazer o bem. Um sábio absolutamente sem paixões não seria mais um homem, seria uma espécie de deus, ou melhor, um ser imaginário que jamais existiu e jamais existirá; ou enfim, para falar mais claramente, seria um ídolo estúpido, desprovido de todo sentimento humano e tão insensível quanto o mármore mais duro".Esta crítica pode ser redirecionada a Nietzsche e a seu protótipo de ser humano ideal , que foi denominado por ele Übermensch (super-homem). Quem era o super-homem de Nietzsche? Um "sobre-humano" de personalidade forte, governado pelo desejo de poder, um misto de deuses do panteão com conquistadores romanos, uma espécie vencedora e sobrevivente da selecção natural darwiniana. É por isso que Nietzsche não podia suportar a idéia cristã de amor aos fracos e miseráveis, é contra a selecção natural dos mais fortes.
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Não havia indiferença ou qualquer espécie de apatia em Jesus. Foi ele mesmo que nos ensinou que uma vida autêntica é uma vida de serviço aos mais fracos. O maior, o Übermensch de Jesus, não é quem tem vontade de poder, mas quem tem vontade de servir. Jesus, através de sua vida na terra, nos ensinou que devemos nos importar com os miseráveis deste mundo, temos que nos deixar abalar pela dor dos que sofrem, dos que não têm comida, roupa e amigos. A bíblia é clara em dizer que Jesus era movido por compaixão. Sua misericórdia surge do meio de suas entranhas e foge ao entendimento humano. A palavra grega para compaixão (splagchnizomai) significa intestinos, entranhas, vísceras, ou seja, a interioridade de onde brotam as fortes emoções. O Deus judaico-cristão, revelado na face de Cristo, chora ao ver uma viúva que perdeu o filho, chora quando vê o seu amigo morto, chora ao ver a dureza do coração de Jerusalém. E movido pela força da compaixão, aproxima-se dos que sofrem e oferece a sua presença consoladora. Na óptica de Cristo, bem-aventurados são os que choram. Nós, cristãos, fomos chamados a viver de acordo com a compaixão de Jesus. Devemos dobrar os nossos joelhos e pedir a Deus a capacidade de nos importarmos com os que estão ao nosso lado. E somente quando amarmos como Ele amou, poderemos dizer: Somos seus discípulos! E em nossa fraqueza, o poder de Deus se manifestará.
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Fonte : Daniel Grubba *** Soli Deo Glória