...Fomos os Portugueses intolerantes e fanáticos dos séculos XVI, XVII e XVIII: somos agora os Portugueses indiferentes do século XIX. Por outro lado, se o poder absoluto da monarquia acabou, persiste a inércia política das populações, a necessidade (e o gosto talvez) de que as governem, persistem a centralização e o militarismo, que anulam, que reduzem ao absurdo as liberdades constitucionais. Entre o senhor rei de então, e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma a servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase que se equivalem. Se a velha monarquia desapareceu, conservou-se o velho espírito monárquico: é quanto basta para não estarmos muito melhor do que nossos avós. Finalmente, do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores. É o fruto que colhemos duma educação secular de tradições guerreiras e enfáticas!
Dessa educação, que a nós mesmos demos durante três séculos, provêm todos os nossos males presentes. As raízes do passado rebentam por todos os lados no nosso solo: rebentam sob forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade a nossa história[...]
Excerto do Discurso de Antero de Quental, Casino Lisbonense, Maio de 1871