Já escrevi noutras ocasiões sobre este tema, e expressei a minha opinião sobre Saramago, o seu carácter e os seus livros. Sinto-me honrado, enquanto português, por Saramago ter recebido o único Nobel da literatura que premiou um escritor português. Ficaria igualmente honrado se outro qualquer escritor português ( e temos felizmente alguns que o mereceram e merecem ainda na actualidade ) o tivesse conquistado. Entre mim e o autor existe, a separar-nos e unir-nos, um livro ( "Levantado do Chão" ) onde é romanceada a história de vida do meu tio-avô João Serra e sobre isso julgo não ter mais nada a acrescentar ao que já disse em anteriores textos que se encontram nos arquivos deste blogue. Respeito em Saramago a sua obra literária, a sua força interior e a sua coerência política e social, tal como respeito e admiro, mesmo se algumas vezes contraditória, a sua visão do mundo. Respeito também a sua opção ateísta, mesmo se esta me parece consolidada sobre as ruínas de uma negação do divino e uma luta permanente com Deus sempre mal explicadas pelo autor. Reside aqui uma das suas poucas fragilidades intelectuais; julgo que ninguém se envolve em tão grande luta de negação de algo ou de alguém que "sabe" não existir. Se Deus, não existe, como pretendia Saramago, porquê uma "guerra" tão encarniçada contra uma entidade inexistente !? O escritor deu explicações públicas sobre esta matéria, mas nunca explicou cabalmente o que estava na origem íntima da sua luta com e contra Deus. Não se decide, como o ouvi repetir várias vezes, ser ateu quando se tem apenas seis ou sete anos de idade. Nessa altura da vida há muita coisa que não está claramente presente na nossa estrutura de pensamento, na nossa personalidade ou na nossa intimidade espiritual, seja para a manifestação de uma atitude ateia ou de afirmação de fé definida e vinculativa para o resto da vida. As excepções, eventualmente, só confirmam a regra.
Dito isto, vou então esclarecer ao que venho hoje.
Vi esta semana na SIC o documentário, por sinal muito bem realizado, sobre Saramago e Pilar. Gostaria mais se este tivesse esmiuçado profundamente as origens de Saramago, pois julgo que talvez se clarificasse uma certa "antipatia", relativamente a Azinhaga, a sua terra, manifestada pelo Nobel no próprio documentário. É certo que Saramago nunca negou as suas origens humildes e isso, quanto a mim, é um ponto relevante a seu favor, mas não entendo a sua "má vontade" em regressar a Azinhaga para que lhe fosse prestada uma homenagem. Percebo muito bem a sua mágoa e a sua revanche contra Portugal que o levaram a refugiar-se em Lanzarote. Saramago foi apenas mais um intelectual a quem o país desprezou. Só tardiamente emendou a mão e isso também não reverte em dignidade para o estado português. José Saramago foi reconhecido, honrado, glorificado pela sua obra em praticamente todo o mundo menos em Portugal e isso traduz muito do espírito mesquinho e personalidade reles que ainda povoa a identidade do poder em Portugal e de quem o ocupa. José Socrates, valha a verdade, teve pelo menos a decência ( que outros nunca tiveram antes dele ) de honrar a obra e o seu autor, mas tarde demais, quando Saramago já não precisava disso para ser reconhecido mundialmente, mostrando-se o escritor, aliás, vagamente incomodado ( quiçá desconfiado ) das honras que o estado lhe prestava, e não seria caso para menos face ao tratamento que até então lhe tinha sido dispensado.
No documentário que vi, surgiu aos meus olhos um homem que perdeu vitalidade física mas não intelectual. Tinha urgência, pela partida adivinhada, em dizer ao mundo o que pensava dele e das pessoas que o habitavam. Gritou até ao fim da sua vida a sua revolta contra o Deus em quem dizia não crer. Notou-se sempre no seu discurso a necessidade de afirmação do não receio da morte mas também a incerteza sobre o que estava para além dela. O Nobel ansiava por preparar o melhor possível a viagem que achava ser final. Fez-me lembrar, no documentário, uma pessoa, como qualquer de nós, que indo viajar, prepara a sua bagagem sem saber que tempo vai fazer no destino e que por isso enche a sua mala de coisas desnecessárias. Foi isso que Saramago transportou da vida, uma mala carregada de coisas desnecesárias que podia ter deixado resolvidas antes da partida.
De resto, não deixarei de gostar de ler Saramago, mesmo que isso possa não agradar a muitos cristãos, ou não cristãos, que me lêm a mim. Ser cristão é tambem, e fundamentalmente, um exercício de tolerância e gratidão. Estou grato a Saramago por ser português e por ter construido uma obra literária de que gosto e por essa obra e o seu autor terem ganho o único Nobel da literatura para Portugal. Deploro a atitude de Portugal e de alguns "eminentes" portugueses que movidos sabe-se lá porque obscuros interesses preferem ignorar e desprezar um prémio Nobel que todos os anos leva os países do mundo a envolverem-se na promoção dos seus autores visando a projecção e prestígio que isso acrescenta à dimensão cultural e humana dos respectivos povos e à univesalidade das suas literaturas.
Jacinto Lourenço