terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O Alto-Comissário do ACNUR e a Mulher de César...

A coisa dita assim, a frio, na ante-véspera do natal, não soa bem e custa-nos mais a deglutir do que uma rabanada encharcada em óleo, que a mim, diga-se, após comida, provoca sempre uma certa náusea e destempero.
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Assistimos, nas últimas semanas, a uma "batalha" entre candidatos a presidente da república, que procuram, à vez, apropriar-se dos pobres como bandeira de campanha eleitoral; de permeio, o primeiro-ministro sente-se espoliado com esta discussão e vem a terreiro dizer que não, que os pobres são dele e de mais ninguém, e eu até acho que ele tem toda a razão: "os pobres são de quem os produz"... Mas estas coisas, num país como Portugal, estão mais ou menos banalizadas. O que não se pode deixar passar como banal ou assunto de somenos são afirmações como a que produziu António Guterres - o do "pântano", lembram-se ? - em entrevista à revista Única, do semanário Expresso, quando reconheceu ser um privilegiado por fazer parte dos 2% de cidadãos que a nível mundial auferem dos mais altos rendimentos. Dei comigo a ver se me lembrava do estatuto de António Guterres e se alguma sua eventual migração para o mundo da finança tinha realmente ocorrido nos últimos dias, já que aí sim, pagam-se, literalmente, fortunas e prémios milionários a gestores e administradores para que estes produzam crises económicas que levem os governos a produzirem cada vez mais pobres e fazerem dos ricos pessoas mais ricas do que alguma vez foram; mas não, Guterres continua a ser o Alto-Comissário do ACNUR (Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados ), que é como quem diz, o homem forte da ONU para lidar com o problema dos refugiados e pobres criados pelos conflitos mundiais. Quando pensamos assim, achamos que este homem-forte deve ser um dos melhores de entre nós, um dos que mais se preocupa com a miséria e tragédia humana, com as migrações que ceifam milhares de vidas de seres humanos que empreendem viagens sem destino nem regresso em busca de um pedaço de dignidade humana. Achamos que este Alto-Comissário deve ter, por vocação e convicção, uma identificação plena com o seu trabalho, que implica, obrigatoriamente, identificação com os milhões que sofrem miseravelmente. O que estes milhões de pessoas menos precisam, e o que menos esperam de alguém que se responsabiliza por eles, é que esse alguém esteja apenas focado num lugar que dá visibilidade mundial e nos largos milhares de euros que caem ao fim do mês na sua conta bancária.
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A ingenuidade é minha; a principal identificação de A. Guterres não é afinal com aqueles que diz proteger. A sua identificação imediata é com os privilegiados que fazem partem do restrito clube dos 2% de pessoas que têm os rendimentos mais elevados do mundo... Foi o que ele disse: que se sentia um privilegiado por isso. Eu esperava que ele se confessasse "especial" por poder servir e ajudar os pobres e miseráveis que a política, a guerra e a economia de casino vão produzindo pelo mundo fora. Ma isso sou eu a pensar e, é claro, sou capaz de ser um bocado ingénuo por ainda acreditar em "histórias da carochinha"...
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Não acho que A. Guterres tenha que se armar em Madre Teresa de Calcutá só porque é o chefe do ACNUR, mas também não me parece que um cargo desta natureza deva ser tão principescamente pago por forma a que coloque o Alto-Comissário entre a escassíssima minoria das pessoas com os mais elevados rendimentos do mundo. O exercício do cargo pedia mais pudor e vergonha, quanto mais não fosse pelo respeito devido aos que morrem à fome, afogados, ou crivados de balas quando tentam sair da miséria que campeia nos campos de refugiados do ACNUR. Mas isso não parece ser muito importante para as Nações Unidas nem para o seu Alto-Comissário, até porque este, como afirmou na entrevista ao Expresso, "olha para trás com enorme tranquilidade".
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A. Guterres até pode ser uma das pessoas mais bem pagas do mundo, mas devia, pelo menos, ser igualmente uma pessoa avisada e de bom senso. Para isso, não seria má ideia começar por reflectir sobre as palavras de Julio César: "à mulher de César não basta ser séria, é preciso que pareça séria" .
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Jacinto Lourenço