segunda-feira, 16 de maio de 2011

A Mentalidade do Criado



[...] Os dois traços terríveis dos portugueses são o províncianismo, de que os cosmopolitas Eça ( sobretudo Fradique Mendes ) e Pessoa desgostavam, e a subserviência. Esta subserviência é o parente pobre da província da soberba. Numa sociedade com graves desigualdades, e herdeira de uma sociedade salazarista e colonial de senhores e servos, de relações de potestade  assentes sobre a escravidão e a ignorância, a subserviência interiorizou-se e ficou um traço de carácter.

As conferências do Estoril são um palco ideal onde se representam alguns desses traços. Gente como Francis Fukuyama, ou Mohamed El Baradei, comportam-se com modos e civilidade, respeito pelos outros, dom que certos portugueses de meia tigela ( grande expressão ) que arrotam postas de pescada ( uma das mais singulares expressões da nossa língua, digna de figurar no vídeo - [ o da mensagem à Finlândia que circulou na internet ] - ) não têm nem terão. Vou contar um episódio.

Num dos dias entrei no perímetro do Centro de Congressos do Estoril dentro de um belo carro, um Mercedes descapotável último modelo. Antes de tentar entrar na faixa de rodagem destinada ao parque de estacionamento reservado, precipitaram-se sobre mim  e o carro vários polícias com sorriso e postura amável que indicaram a direcção com grande espírito de serviço e boa educação. Em seguida, vários jovens de fatinho ofereceram-me o dístico de parque que me incluia no grupo dos eleitos, e instruções, sorrisos, senhora doutora para aqui e para ali, ocupando-se de me arranjar um lugar e de me ajudar a estacionar ao lado dos outros Mercedes e BMW. E nem era eu que guiava. Ninguém me perguntou o que ia fazer ali ou se tinha direito a parque reservado. No dia seguinte entrei  no mesmo perímetro reservado ao volante de um velho Twingo com o dístico dos "eleitos" bem à vista. Os polícias madaram-me logo parar com ar carrancudo quando tentei avançar para o parque, apesar de ter o dístico bem colocado. "Onde é que pensa que vai ?" Disse onde é que pensava que ia. Um jovem carrancudo olhando o dístico do carro com reservas, foi buscar uma lista e perguntou-me se estava ligada a alguma instituição. Consultou a lista, olhou para o carro, consultou o colega, e comecei a passar-me. Já tinha mostrado uma identificação, um cartão com uma fita a atestar que era speaker, ele continuava a procurar um modo de me expulsar do reservado. Disse que ia apresentar o último orador, Mohamed  El Baradei. Não se deixou impressionar. Aí, subitamente um dos outros baixou a cara para me olhar bem e reconheceu-me. Tudo mudou. Disse-me logo para passar. Outro polícia carrancudo olhava para aquilo com desconfiança. Lá entrei no parque. Ninguém me ajudou ou arranjou um lugar de estacionamento.

Este pequeno filme português também podia e devia ser apresentado não aos finlandeses mas a todos os portugueses. É o traço comum do nosso subdesenvolvimento. Os pobres curvando a espinha e tirando respeitosamente o chapéu perante os fidalgos da casa mourisca. E, para ser rico, neste país, basta ter um carro bom. É o símbolo do status. Não admira que não haja empresário pato bravo que não queira ter um Ferrari Testarossa. Se eu entrasse de Aston Martin, não era eu que apresentava o Baradei, era ele que me apresentava a mim, segundo a ontologia dos jovens de fatinho que pululavam. O fato de Francis Fukuyama, por acaso, era dos mais amachucados. Se entrasse com ele no Twingo punham-nos fora.

A desigualdade que nos é imposta por factores externos é interiorizada nestes termos. Deixarmos que nos considerem inferiores é um modo de sermos inferiores. E nisto somos inexcedíveis. Pessoalmente, sempre me estive nas tintas para o que pensam de mim. Porque não deixo que ninguém me intimide. É mais simples do que parece.



Texto de Clara Ferreira Alves, in Revista Única, Semanário Expresso de 14 de Maio de 2011


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Subscrevo integralmente o texto de Clara Ferreira Alves aqui reproduzido . Eu próprio, de uma outra forma, também já aqui postei um texto que realça esta disformidade do carácter  e da idiossincrasia  de um povo que não aprende nem com os seus próprios erros. E é pena. Bastava que cada português  olhasse para o seu semelhante e lhe dispensasse   a probidade e respeito que  requer para si próprio. Assim, Portugal seria um lugar muito mais feliz e capaz de se respeitar como país no plano interno e externo.

J L